Referência
no mercado de
cinema no Brasil
O diretor inglês Anthony Minghella lia, maravilhado, o romance O paciente inglês, de Michael Ondaatje, quando sentiu uma súbita urgência: “Preciso levar isso ao cinema”. Conseguiu os direitos, deixou o livro de lado e nunca mais o pegou. “As melhores adaptações são aquelas que não têm o compromisso da fidelidade”, completou a editora Liz Calder, em uma das mesas do RioContentMarket desta quarta, dia 25, ao lembrar a história. Foi um dia de reflexões sobre a presença – fiel, bastarda, comercialmente eficaz ou não – da literatura no audiovisual.
No palco do salão do Windsor Barra, no Rio, estavam editores de importantes empresas que têm em seu portfólio best-sellers adaptados para o cinema ou TV. Além da britânica Liz, que repassou sua carreira entre livros e filmes (ela chegou a trabalhar como garimpeira de histórias para a MGM antes de ajudar a fundar a Bloomsbury Publishing), formavam o time Vivian Wyler, da Rocco, e Flávio Moura, da Companhia das Letras. A mediação foi do jornalista Pedro Butcher.
As mudanças recentes desses mercados – tanto o literário quanto o audiovisual - foram os tópicos quentes da apresentação. A explosão de demanda por conteúdos afetou escritores, roteiristas e o próprio trânsito da produção criativa entre os dois universos. “Em 1993, quando A firma, de John Grisham, virou um filme de Hollywood com Tom Cruise, o parâmetro de sucesso eram 20 mil exemplares. Com Jogos Vorazes, vendemos 600 mil”, demarcou Vivian.
Os megassucessos literários, que formaram franquias análogas às do cinema, borraram a fronteira com o mundo do audiovisual. Surgiram, como lembrou Vivian, as agências de talents (talentos), que passaram a reunir nomes do cinema, dos livros e da TV no mesmo balaio: “Apareceu o escritor de performance, que o público segue nas feiras literárias. O autor não quer mais ser um grande autor, quer ser também alguém que vende muito”.
Flávio Moura, da Companhia das Letras, falou da contaminação da literatura pelo audiovisual e vice-versa. Ele citou o exemplo de Fim, sucesso literário de Fernanda Torres que teve sua célula narrativa nascida de uma encomenda de série. A ideia para o livro surgiu quando o diretor Fernando Meirelles pediu uma história à atriz para o projeto de Os experientes, programa de ficção para a Globo sobre a velhice. Fernanda rascunhou um primeiro tratamento, mostrou à editora e dali foi juntando outros elementos. “O livro assumiu parte da estrutura seriada, com um capítulo dedicado a cada personagem”, lembrou o editor.
O exemplo contrário pode ser encontrado em The Wire, elogiada série da HBO que nasceu como uma experiência de “romance para a televisão” do criador David Simon. Para isso, ele reuniu romancistas como Dennis Lehane e Richard Price e fez da trama uma coletânea de narrativas em camadas, como uma obra de Balzac. Para demonstrar seu argumento, Moura exibiu uma cena do seriado que incorpora toda a riqueza do linguajar maldito da periferia americana que aparece em Clockers, livro mais conhecido de Price.
Essa troca não se dá apenas na linguagem, como também no financiamento. Muitas vezes, é a venda de direitos para a indústria audiovisual que sustenta autores durante o longo inverno de uma criação literária. Foi o caso de Lira Neto e sua série sobre Getúlio Vargas, que começou em 2008 e só terminou em 2014. “Pagamos um adiantamento para o primeiro livro e a produtora RT Features se interessou logo pelo material. Investiram três vezes o que tínhamos disponível e assim o escritor conseguiu levar a pesquisa adiante”, contou Moura. “Editoras são pobrinhas diante do mercado do cinema e TV”, brincou.
Mesmo com todo o histórico de tie-ins (como o mercado literário costuma chamar esses produtos derivados), a adaptação não é uma ciência exata, destacaram os participantes. O sucesso de um livro pode afetar o desempenho do filme ou, dependendo do timing e de outras forças mais ocultas, quase não provocar efeito. Vivan citou dois exemplos que deram em água, apesar das expectativas: “A última tentação de Cristo”, que virou filme polêmico de Martin Scorsese, e “O céu que nos protege”, adaptado para as telas por Bernardo Bertolucci. Moura lembrou do êxito de “12 anos de escravidão” nas prateleiras das livrarias e de outros títulos que não causaram tanto impacto: “O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, teve pouco movimento causado pelo filme. A nova versão da série baseada em Gabriela, que tinha Juliana Paes como protagonista, também não teve efeito excepcional”.
Foi Liz Calder, de novo, quem deixou a provocação mais contundente. “Um romance fraco é mais fácil de adaptar do que um grande romance. Para ter força equivalente ao original, é preciso ser diferente”, cutucou.
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