Restrição da Argentina à Disney marca tema da regulação

Restrição da Argentina à Disney marca tema da regulação

Ana Paula Sousa
02 fev 22

Há duas semanas, a Secretaria de Defesa da Concorrência, o equivalente argentino do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) no Brasil, determinou importantes limitações ao conglomerado formado pela Disney e pela Fox. De acordo com a decisão, o grupo deve, dentro de um ano e meio, realizar um processo de desinvestimento, ou seja, abrir mão de alguns de seus direitos de transmissão esportiva.

Reprodução
Disney comprou a Fox em 2019

A medida foi tomada para evitar a concentração de mercado gerada pela compra da Fox pela Disney, em 2019. Desde então, o grupo detém, na Argentina, sete das nove principais transmissões esportivas. A secretaria entende que a atual configuração limita as possibilidades de concorrência, além de prejudicar o interesse do público. 

Para tentar diminuir o desequilíbrio causado pela concentração  antes mesmo do prazo para o desinvestimento , determinou-se imediatamente que o grupo transmita, gratuitamente, jogos do River Plate e do Boca Juniors, assim como da Liga dos Campeões.

Um marco para a região

Apesar de dizer respeito exclusivamente às transmissões esportivas, a decisão na Argentina é um marco importante para América Latina, região em que a regulação do streaming ainda está em processo de discussão. Como se sabe, a internet, a partir da banda larga, ao permitir a transmissão de vídeos com boa resolução da imagem e velocidade de carregamento, embaralhou por completo as regras vigentes.

No caso do Brasil, o Cade aprovou a fusão Disney/Fox, em 2020, com apenas algumas exigências, entre elas manter a marca Fox Sports até 1º de janeiro de 2022 (a exigência foi cumprida e, agora, o canal se chama ESPN 4).

Além disso, por aqui, se o conglomerado transmitir conteúdo na TV, estará sujeito à legislação do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), conhecida como Lei da TV Paga. Mas, se esse mesmo conteúdo chegar ao consumidor via over the top (OTT) — termo técnico para a transmissão via internet, ou seja, streaming —, ele não está sujeito nem à Lei Geral da Telecomunicações (1997), nem à MP 2228-1 (2001) e nem à Lei 12.485 (2001).

A Fox, a Claro e o SeAC

Se isso acontece é porque até hoje o streaming não foi regulado no país  e porque, em 2020, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) afirmou que a oferta de conteúdo linear pela internet não é um Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), mas um Serviço de Valor Adicionado (SVA)

O conteúdo linear é aquele no qual a organização cabe a um programador caso das televisões —, e o conteúdo não linear é aquele oferecido pelos serviços de vídeo sob demanda (VoD), como Netflix.

A questão sobre se conteúdo transmitido via OTT estaria sujeito à regulação do SeAC havia chegado à Anatel a partir de uma denúncia feita pela Claro, em 2018, contra as programadoras Fox e Turner, que passaram a oferecer seus serviços diretamente ao consumidor, via internet. 

A Claro argumentou que as empresas estavam burlando a Lei do SeAC. Os pareceres da Ancine, da Advocacia Geral da União (AGU) e da Secretaria Nacional de Assuntos Econômicos indicaram que não estavam.

O que isso significa, na prática? Que, hoje, qualquer conteúdo transmitido via streaming deixa de estar sujeito às regras concorrenciais, à limitação para contratação de talentos brasileiros, ao pagamento de Condecine e às exigências e divulgação de dados de audiência. 

E é neste ponto que a decisão tomada na Argentina se encontra com o Brasil. Como o país vai lidar com os novos desafios regulatórios impostos pela convergência digital?

Experiências no mundo

Na Alemanha, por exemplo, o VoD passou a responder à Agência Federal de Internet após a criação, no fim de 2021, de um novo marco legal para as telecomunicações. 

O Reino Unido vive uma intensa discussão em torno da criação de regras mais rígidas para que o VoD também seja enquadrado em obrigações que dialoguem com a radiodifusão. 

O governo espanhol, por sua vez, estabeleceu um plano — o Plan España Digital 2025  que pretende modernizar conjuntamente os setores de tecnologia, telecomunicações e audiovisual e atrair investimentos do país. 

Os exemplos internacionais reforçam o argumento de diversos profissionais do setor de que, sem a ação do Estado, o mercado tenderá sempre à concentração e à desproteção de empresas e conteúdos locais. No próprio mercado de TV Paga no Brasil, 80% das assinaturas estão concentradas em dois grupos econômicos.

O cabo de guerra dos Artigos 5º e 6º

Nesse sentido, é importante que o setor audiovisual, ao se mobilizar em torno dos debates sobre a regulação do streaming, entenda que a cota de tela, uma antiga bandeira do cinema brasileiro, não é mais a principal garantia de proteção ao produto nacional.

Tanto é assim que, quando se fala sobre a revisão da Lei do SeAC, um alvo central da disputa entre os peixes grandes são os Artigos 5º e 6º, que determinam restrições à atuação simultânea das teles nas atividades de produção de conteúdo e programação. Os artigos também regulamentam a estrutura societária das empresas que atuam na TV por assinatura, procurando, com isso, evitar a verticalização da cadeia de valor audiovisual.

Enquanto uma companhia como SBT defende a manutenção dos artigos, as operadoras de SeAC (como a Claro) e VoD pedem a revogação das restrições. 

A revogação foi recomendada também num estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) publicado em 2020.

É, portanto, sob disputas relacionadas à livre concorrência e a questões societárias que devem ser traçados, no presente e no futuro próximo, os destinos do audiovisual brasileiro.