Kleber Mendonça Filho: “política pública inteligente é de formação de olhar”

Kleber Mendonça Filho: “política pública inteligente é de formação de olhar”

Fabiano Ristow, Rodrigo Saturnino Braga e Paulo Sérgio Almeida
09 ago 23

Imagem destaque

Victor Juca / Divulgação

Kleber Mendonça Filho

Uma das mensagens de Retratos fantasmas (Vitrine), quinto longa-metragem (e segundo documentário) do pernambucano Kleber Mendonça Filho, é a de que o hábito de ir ao cinema contribui não apenas para a formação de público, mas também constrói caráter.

No que talvez seja o projeto mais pessoal do diretor de O som ao redor, Aquarius, Bacurau e Crítico, Retratos acompanha as transformações urbanas que marcaram a vida do diretor, desde a sua infância no bairro de Setúbal até o fechamento de históricos cinemas de rua no Centro do Recife, onde hoje resta apenas um: o São Luiz, mantido pelo governo do estado. Muitas dessas transformações se refletem em temas abordados na filmografia do realizador.

Em entrevista à Filme B, Kleber Mendonça diz que o documentário, que estreia em 24 de agosto cercado de elogios após passar pelo Festival de Cannes, fora de competição, é um "álbum-família do Recife": "O tom não é de saudosismo, e sim de respeito à passagem do tempo."

Ele diz também que cinemas de rua são capazes de revitalizar a área ao seu redor, defende o retorno urgente da Cota de Tela e afirma que a produção nacional está se reerguendo aos poucos após ser maltratada por governos que menosprezaram o setor cultural.

O documentário vai abrir o Festival de Gramado no próximo sábado, 12, e já iniciou campanha para pré-indicação ao Oscar 2024.

João Carlos Lacerda / Divulgação
Cinema São Luiz exibindo 'Os Saltimbancos Trapalhões', de 1981

Retratos fantasmas apresenta um amplo acervo pessoal gravado ao longo da sua vida. Por que quis fazer o filme?

Eu fiz um álbum do Recife, mas não só de fotografias minhas. Na produção, pedi no Instagram que me mandassem imagens do Centro. Percebi que as famílias tinham a tendência de fotografar pessoas com um cinema ou com seus carros no fundo, numa espécie de orgulho. Meu filme vai atrás do que está no fundo dessas imagens. Aos poucos, você consegue montar um álbum, e me agrada muito esse panorama de imagens que, além de históricas, são unidas pelo mesmo lugar.

Além de ex-coordenador de cinema da Fundação Joaquim Nabuco, você é um agitador cultural que luta pela preservação do audiovisual no Recife. De onde vem esse impulso?

Existe algo especial no Recife. É como se houvesse um confronto entre uma cidade tacanha, maltratada, que se destrói, tomada por construtoras, e uma população que luta para impedir isso. Isso explica o São Luiz ter resistido desde a sua inauguração em 1952, assim como o Teatro do Parque, desde 1915. Outras cidades, no Brasil e no mundo, não conseguiram, ou não quiseram, salvar uma clássica sala de cinema de rua. Quando, por exemplo, fizemos o Janela Internacional de Cinema [festival fundado por Kleber e a produtora Emilie Lesclaux] e uma retrospectiva de Stanley Kubrick, após a restauração iniciada em 2008, disseram, inclusive profissionais do mercado, que ninguém iria à região do São Luiz às 20h. Resultado: às 23h ainda havia uma fila rodando o quarteirão. Ou seja, existe uma "desprogramação" feita pelo próprio mercado, que ensina as pessoas a se comportarem de uma forma. Mas elas se comportam de um jeito próprio.

Por que políticas públicas para defender o cinema de rua são importantes?

Uma política pública inteligente é de formação de olhar, e essa formação passa pelo aproveitamento de grandes espaços que dialogam com a cidade grande. O cinema do Teatro do Parque cobrava R$ 1 por filme, após este passar pelo circuito comercial. Lá, Cidade de Deus fez 26 mil espectadores em duas semanas. Amarelo Manga, 18 mil. Depois da sessão, você saía a 30 metros de onde o longa tinha sido rodado, sentindo o cheiro e a ambientação do lugar. Isso traz um impacto, integra um movimento que faz a pessoa pensar: "Isso aqui é muito melhor que um shopping". Isso constrói caráter. Quando há uma mostra no São Luiz, o quarteirão ganha vida, é uma sensação de cidadania. Não é preciso sequer ter um carro de segurança no local, porque as pessoas são a segurança. Se você, por outro lado, manda todo mundo para o shopping, a rua fica vazia. Não sou contra os cinemas de shopping, são uma versão diferente da experiência. Só não são melhores que a rua.

Em tempos de streaming e num contexto em que diversos cinemas de rua fecharam, você se mantém otimista?

O momento atual do cinema é interessante e rico. Trabalho muito para que meus filmes possam ser vistos em todas as janelas possíveis. Eu sequer fico chateado quando alguém vê pelo celular. Até hoje Bacurau recebe até 20 avaliações diárias no Letterboxd de pessoas que o viram das mais variadas formas, seja numa mostra na Nova Zelândia, seja no tablet, e acho isso o máximo. Só quero que os filmes passem primeiro pelos cinemas. Minha chateação começa quando essa ordem é quebrada.

Conforme o mercado se recupera da pandemia, cresce a pressão para a volta da Cota de Tela, ainda mais num contexto em que o cinema nacional teve apenas 1% do market share no primeiro semestre de 2023. Qual a sua posição?

Se os franceses e os coreanos aplicam a cota de maneira ferrenha, por que nós não podemos fazer? Estamos saindo de duas pandemias: a da Covid-19 e a dos governos Temer e Bolsonaro, que menosprezaram a cultura. Ainda estamos nos reerguendo, por isso esse 1%. O ano de 2019 merece um estudo. Naquela época, teve Bacurau e Vida invisível em Cannes. Tivemos A febre, da Maya Da-Rin, e Divino amor, do Gabriel Mascaro. Também tivemos sucessos comerciais, como Turma da Mônica, e fenômenos locais, como Cine Holliúdy 2. Até mesmo o documentário da Petra Costa [Democracia em vertigem], mesmo sendo do streaming, atestou a nossa diversidade de produtos. E teríamos ido ainda mais longe caso Marighella tivesse sido lançado à época, não fossem as burocracias que enfrentou. A Cota de Tela faz falta.