Referência
no mercado de
cinema no Brasil
Entre 2019 e 2020, o cinema brasileiro viu-se, de repente, sob ameaças que, pouco tempo antes, pareceriam-lhe improváveis.
Entre elas, estavam a extinção da Agência Nacional de Cinema (Ancine), vocalizada por Jair Bolsonaro; o não pagamento de editais do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA); e, com a eclosão da pandemia, o fechamento das salas e a inviabilidade dos sets de filmagem.
Dessa situação emergiu, em 2021, um outro cinema brasileiro, diferente de todos que houve antes. Materializada por meio do capital de empresas internacionais de entretenimento, em especial as plataformas de streaming, a nova onda aposta em adaptações literárias e gêneros em evidência que satisfazem desde o público infanto-juvenil até os aficionados por crimes reais.
Sobre livros e jovens
As estrelas desse novo audiovisual (que inclui séries) são, sobretudo, jovens cujo sucesso antecede a chegada às telas — caso das escritoras Thalita Rebouças e Paula Pimenta, como lembra uma reportagem da Folha de S. Paulo publicada nesta semana. Mas há de tudo.
Raphael Montes, autor de romances policiais e roteirista da série Bom dia, Verônica, da Netflix, por exemplo, foi contratado como roteirista da HBO Max. Cabe aqui um parêntese: a TV Paga não pode, por lei, contratar talentos brasileiros, mas o streaming não está sujeito a esta limitação.
Livros sobre casos reais — o equivalente brasileiro ao true crime — também figuram entre as apostas dos serviços de streaming. Um deles é Todo dia a mesma noite, sobre o incêndio na boate Kiss, que virará série na Netflix.
A velocidade com que as novidades têm sido anunciadas é alta, mas é possível tirar algumas constatações. Uma delas é a que, de fato, um novo ciclo começou. Significará ele, como outros da história, um rompimento com as experiências anteriores?
Uma história feita de ciclos
A noção de ciclos marca a historiografia do cinema brasileiro desde, pelo menos, a década de 1950. Entre eles, estão o ciclo da Embrafilme, assim denominado após o fim da empresa estatal, em 1990, e o da Retomada, identificado quando os primeiros filmes gestados pela Lei do Audiovisual, de 1993, começaram a ser lançados.
Entre quem reflete sobre o cinema, Eduardo Escorel já disse que o início dos ciclos nada mais é do que um recomeço. E Arthur Autran chamou a atenção para a tendência a se considerar o fim de um ciclo como o retorno a uma “situação de inexistência”.
Arte e indústria, cultura e mercado
O cinema brasileiro ancorou-se, a partir dos anos 2000, na tríade legal composta pela MP 2228-1, que criou a Ancine; pela Lei 11.437 (2006), que instituiu o FSA; e pela Lei 12.485 (2011), responsável pela criação das cotas na TV Paga e da Condecine-Teles.
Em 2001, 30 longas-metragens brasileiros haviam entrado em cartaz nos cinemas. Em 2019, último ano pré-pandêmico, foram 169.
Esse ciclo de desenvolvimento foi interrompido em 2019, com a publicação do acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU), que apontou o risco de colapso na Ancine e colocou em xeque todo o sistema de prestação de contas do FSA. Ao acórdão seguiram-se, como se sabe, a crise institucional e política da agência e a pandemia.
Mas as leis mantêm-se em vigor, e o FSA, depois de dois anos de paralisia, voltou a liberar recursos em 2021, com novos editais anunciados para 2022.
Dois mundos em desequilíbrio
Hoje, como dizem os produtores que trabalham para as plataformas, dois mundos coexistem em desequilíbrio: aquele dos filmes feitos com recursos públicos e, agora, o do streaming.
Este novo universo não é imune a críticas. Nele, a velocidade de novas produções e o tamanho dos orçamentos são muito maiores, mas a autonomia criativa, muito menor. Uma diferença, tida por muitos como central, é que, neste ciclo disparado pelo dinheiro privado, as produtoras brasileiras não são mais detentoras dos direitos de propriedade sobre as obras — um dos princípios a nortear a Lei 12.485.
Duas questões amplamentamente debatidas atualmente determinarão se este novo ciclo significará um rompimento ou se carregará certa continuidade: a manutenção da política pública e a regulação dos serviços de vídeo sob demanda.
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