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Há duas décadas, o setor cultural anda em círculos, às voltas com uma questão difícil: as prestações de contas de projetos feitos com recursos públicos.
Como resultado de um trabalho conduzido por escritórios de advocacia e associações, despontou no horizonte, em outubro de 2022, a faísca de uma solução para o passivo de projetos com contas abertas.
O Tribunal de Contas da União (TCU), por meio da Resolução nº 344, definiu que o Estado tem cinco anos para julgar as prestações de contas, a contar do momento em que são entregues, e pedir ressarcimento ao erário. Antes, o prazo era de dez anos.
Isso significa que boa parte dos 4 mil projetos do passivo da Ancine deve prescindir de análise. O passivo era um dos problemas apontados no acórdão do TCU que, em 2019, instalou a maior crise da história da agência e levou à sua paralisação.
Há, no entanto, um caminho jurídico e administrativo a ser percorrido para que a prescrição seja aplicada.
“Os efeitos da resolução estão gradualmente sendo incorporados, não na rapidez esperada”, diz Mariana Chiesa, mestre e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo e sócia da Manesco, Ramirez, Perez, Azevedo Marques Advogados.
Na Ancine, está em fase de conclusão o parecer que deve dar forma à prescrição.
A prescrição em curso
“Está em fase final de construção um parecer que delimita o passivo, sem violar direitos de produtores que apresentaram prestações de contas há quase uma década”, afirma, em entrevista por escrito à Filme B, Alex Braga, diretor-presidente da Ancine.
À frente do trabalho está o procurador-chefe da Ancine, Thomas Augusto Ferreira de Almeida, nomeado em outubro de 2022, e egresso do Ministério da Infraestrutura.
Um dos aspectos sensíveis da resolução do TCU diz respeito ao receio, dentro da máquina pública, de que alguns servidores venham a ser responsabilizados pelo acúmulo de projetos e sua consequente prescrição.
“Acredito que alguns servidores possam, de fato, ter esse receio, e o risco existe. Com o reconhecimento da prescrição, o débito para com o Estado não existe mais”, diz Mariana Chiesa. “Mas, pessoalmente, acho difícil a responsabilização funcional nesses casos, a não ser que seja demonstrada uma intenção deliberada de represamento nas análises.”
A advogada, ao mesmo tempo, mostra que a máquina pública está diante de uma faca de dois gumes: “Não aplicar a resolução do TCU, que não deixa mais margem para discussão, também poderá trazer consequências para os gestores”.
Pacto com o TCU
No caso da Ancine, além do amparo jurídico para o processo de prescrição, está sendo consolidado o novo método a ser aplicado às prestações de contas que ainda devem ser analisadas.
“Já pactuamos com o TCU um novo plano, mais eficiente e menos burocrático, que garante um maior controle dos recursos públicos”, afirma Braga. “Esse plano resolve o problema para os novos projetos.”
O desenho final da metodologia está a cargo de José Paulo Barbieri, auditor-chefe nomeado em dezembro. Barbieri vem do Departamento de Cultura e Educação da Controladoria Geral da União.
O novo sistema, inclusive, tem como inspiração o modelo de gestão de riscos aplicado do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
A saga fiscal
“Está superada a ideia de que o melhor caminho para a prestação de contas era a apresentação de todos os documentos fiscais”, afirma Braga.
A exigência de apresentação, em versão digitalizada, de todos os documentos, tinha sido colocada em prática em 2020.
A ordem implicou, no caso das grandes empresas, na contratação de equipes exclusivas para recuperar velhas prestações de contas e, no caso dos proprietários de pequenas produtoras, em noites de insônia.
Cabe lembrar que, no ano anterior, um acórdão do TCU havia questionado, de forma incisiva, a falta de controle da agência.
Colocava-se então em xeque o método Ancine +Simples, que preconizava uma prestação de contas por amostragem.
No lugar disso, veio a exigência draconiana, e impraticável.
Tudo ou nada
“Querer ver tudo é, às vezes, não ver nada. Buscamos vários caminhos, mas esse modelo se mostrou inviável para a solução do passivo”, diz Braga.
“A intenção, ainda que boa, de analisar tudo criou obstáculos operacionais para a Ancine e entraves burocráticos desnecessários para os produtores.”
Em novembro passado, o TCU acatou o pedido da Ancine para que fossem exigidos apenas os documentos fiscais mais relevantes.
Retoma-se, assim, o decreto 8.281, de 2014, publicado quando Manoel Rangel era diretor-presidente e Braga, procurador-chefe da agência.
Este decreto, que estava na origem do Ancine +Simples, foi abandonado em 2018.
Nova metodologia
A diferença, agora, é que, em vez de analisar prestações por meio de sorteio, serão analisadas apenas as grandes despesas — que podem estar tanto em grandes quanto em pequenos projetos.
A metodologia toma por base o “ótimo de Pareto”, conceito que preconiza que 20% dos documentos correspondem a 80% das despesas.
O que isso significa? Que a Ancine deve se debruçar sobre 20% dos documentos e fechar o foco da análise no cumprimento do objeto — ou seja, nos filmes e séries concluídos.
De acordo com Braga, também deve ser apresentada, em breve, uma proposta para o aperfeiçoamento da Instrução Normativa 159, de 2021, que dispunha sobre a análise, a aprovação e o acompanhamento de projetos.
Leonardo Edde, presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual (Sicav) e um dos interlocutores da agência nesse processo, vê com otimismo o movimento:
“Precisamos garantir segurança jurídica com previsibilidade, tanto para os regulados – os agentes econômicos – quanto para os servidores da Ancine e os servidores do TCU.”
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